CÉSAR BENJAMIN
DEIXO de lado os insultos e as versões fantasiosas sobre os "verdadeiros motivos" do meu artigo "Os Filhos do Brasil". Creio, porém, que devo esclarecer uma indagação legítima: "por quê?", ou, em forma um pouco expandida, "por que agora?". A rigor, a resposta já está no artigo, mas de forma concisa. Eu a reitero: o motivo é o filme, o contexto que o cerca e o que ele sinaliza.
Há meses a Presidência da República acompanha e participa da produção desse filme, financiado por grandes empresas que mantêm contratos com o governo federal.
Antes de finalizado, ele foi analisado por especialistas em marketing, que propuseram ajustes para torná-lo mais emotivo.
O timing do lançamento foi calculado para que ele gire pelo Brasil durante o ano eleitoral. Recursos oriundos do imposto sindical -ou seja, recolhidos por imposição do Estado- estão sendo mobilizados para comprar e distribuir gratuitamente milhares de ingressos. Reativam-se salas pelo interior do país e fala-se na montagem de cines volantes para percorrerem localidades que não têm esses espaços. O objetivo é que o filme seja visto por cerca de 5 milhões de pessoas, principalmente pobres.
Como se fosse pouco, prepara-se uma minissérie com o mesmo título para ser exibida em 2010 pela nossa maior rede de televisão que, como as demais, também recebe publicidade oficial. Desconheço que uma operação desse tipo e dessa abrangência tenha sido feita em qualquer época, em qualquer país, por qualquer governante. Ela sinaliza um salto de qualidade em um perigoso processo em curso: a concentração pessoal do poder, a calculada construção do culto à personalidade e a degradação da política em mitologia e espetáculo. Em outros contextos históricos isso deu em fascismo.
O presidente Lula sabe o que faz. Mais de uma vez declarou como ficou impressionado com o belo "Cinema Paradiso", de Giuseppe Tornatore, que narra o impacto dos primeiros filmes na mente de uma criança. "O Filho do Brasil" será a primeira -e talvez a única- oportunidade de milhões de pessoas irem a um cinema. Elas não esquecerão.
Em quase oito anos de governo, o loteamento de cargos enfraqueceu o Estado. A generalização do fisiologismo demoliu o Congresso Nacional. Não existem mais partidos. A política ficou diminuída, alienada dos grandes temas nacionais. Nesse ambiente, o presidente determinou sozinho a candidata que deverá sucedê-lo, escolhendo uma pessoa que, se eleita, será porque ele quis. Intervém na sucessão em cada Estado, indicando, abençoando e vetando. Tudo isso porque é popular. Precisa, agora, do filme.
Embalado pelas pré-estreias, anunciou que "não há mais formadores de opinião no Brasil". Compreendi que, doravante, ele reserva para si, com exclusividade, esse papel. Os generais não ambicionaram tanto poder. A acusação mais branda que tenho recebido é a de que mudei de lado. Porém os que me acusam estão preparando uma campanha milionária para o ano que vem, baseada em cabos eleitorais remunerados e financiada por grandes grupos econômicos. Em quase todos os Estados, estarão juntos com os esquemas mais retrógrados da política brasileira. E o conteúdo de sua pregação, como o filme mostra, estará centrado no endeusamento de um líder.
Não há nada de emancipatório nisso. Perpetuar-se no poder tornou-se mais importante do que construir uma nação. Quem, afinal, mudou de lado? Aos que viram no texto uma agressão, peço desculpas. Nunca tive essa intenção. Meu artigo trata, antes de tudo, de relações humanas e é, antes de tudo, uma denúncia do círculo vicioso da extrema pobreza e da violência que oprime um sem-número de filhos do Brasil. Pois o Brasil não tem só um filho.
Reitero: o que escrevi está além da política. Recuso-me a pensar o nosso país enquadrado pela lógica da disputa eleitoral entre PT e PSDB. Mas, se quiserem privilegiar uma leitura política, que também é legítima, vejam o texto como um alerta contra a banalização do culto à personalidade com os instrumentos de poder da República. O imaginário nacional não pode ser sequestrado por ninguém, muito menos por um governante.
Alguns amigos disseram-me que, com o artigo, cometi um ato de imolação. Se isso for verdadeiro, terá sido por uma boa causa.
CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista da Folha.
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