Por Ernesto Pichler*
Não sou um especialista em qualidade. Talvez seja um especialista em falta de qualidade. Como pesquisador do Laboratório de Embalagem e Acondicionamento do IPT, onde fiquei até aposentar, era a falta da qualidade das embalagens o que eu analisava, vendo o que deu errado nos testes e buscando correções. Hoje, como perito trabalhando com a segurança no transporte de cargas, também focalizo as falhas, o que deu errado e até resultou em acidentes, para um trabalho de prevenção de riscos.
Muitos especialistas em qualidade ficam tão vidrados no assunto que passam a ver tudo sob a óptica da qualidade. Trabalham com definições muito abrangentes, como “qualidade é a satisfação do cliente”, que são tão vagas como confusas, por abranger aspectos técnicos, econômicos e até psicológicos, numa completa falta de foco. Eu prefiro ver a coisa mais dicotomizada. Não que essa seja a maneira certa de ver, pois não há maneira certa. É a forma mais proveitosa de se ver, em termos de clareza dos conceitos e consequências: uma coisa é qualidade, outra coisa é custo. Misturar as coisas dá confusão. Há especialistas em qualidade e especialistas em análise de custos. Um especialista em tudo acaba se perdendo, não é especialista em nada.
Agora acho que posso explicar o título, mais que provocador: o que interessa não é a qualidade mas a relação qualidade / custo. De fato, não interessa ter uma qualidade excelente mas a um custo que ninguém paga. A dicotomização permite ver o conjunto dessa forma, em seus componentes.
Precisaria agora definir os conceitos básicos: o que é qualidade? O que é custo? Como não sou um especialista em qualidade, ainda menos em custos, vou ficar apenas no básico. A definição que interessa é a que for rica em coerências, interna e externa, e em consequências. A definição de qualidade que melhor tem essas características é aquela com que trabalhei no IPT: qualidade é a conformidade a especificações. Essa definição já tem uma consequência enriquecedora: qualidade é a conformidade a especificações, desde que as especificações tenham qualidade. Para escaparmos da aparente tautologia, temos, agora, que definir a qualidade de uma especificação. A especificação é uma norma técnica que estabelece os requisitos para aceitação de um produto ou serviço e estabelece os métodos para verificação (testes) ou avaliação (ensaios) da conformidade. Os requisitos têm que ter qualidade: não podem ser excessivos a ponto de aumentar o custo desnecessariamente; não podem ser frouxos a ponto de admitir qualquer coisa. Têm que exigir o que realmente interessa, que tenha relação com o desempenho esperado, ou o comportamento esperado, do produto ou serviço. Também os testes (qualitativos, tipo “passa-não passa”) e os ensaios (quantitativos, dando um resultado numérico) devem ter metodologias racionais. Devem ser correspondentes à realidade, ser reprodutivos (um mesmo produto, com o mesmo método, deve dar o mesmo resultado nas repetições do teste ou ensaio), ser reprodutíveis (mesmo resultado por diferentes operadores), devem ser sensíveis (produtos diferentes dão resultados diferentes). Devem ser simples e de baixo custo visando, ou o controle da qualidade de desenvolvimento (podendo ser mais complexo e caro, pois é esporádico), ou o controle da qualidade do produto em produção ou acabado (que é um controle constante, portanto não pode ser caro). Supõe-se, nestas definições, um grande grau de razoabilidade. Espera-se que a razoabilidade seja consequência de um consenso entre técnicos com bons conhecimentos, que participam da elaboração da norma técnica. Esse é o grande problema: há grandes comitês de “experts” internacionais que produzem monstruosidades, como as Normas da ONU para transporte de produtos perigosos, que são normas perigosas, que não devem ser seguidas (mas isso é tema para outro artigo). Há comitês, na ABNT por exemplo, que visam proteger interesses de determinadas empresas, e dane-se o consumidor e/ou o ecoambiente. Então, a qualidade da norma depende da qualidade da normalização, que é um processo político.
O conceito de qualidade se complica (ainda mais) se procurarmos a chamada “qualidade total”. A qualidade total só pode ser entendida como a qualidade de vida da população – alvo, o que se estende para a qualidade ecoambiental. Daí aparecerem até selos que garantem a “qualidade social” de um produto, significando que foi produzido com exploração dos trabalhadores dentro de limites admissíveis (por quem?). Atesta-se a “qualidade ambiental” de produtos, não se sabe como, pois não há normas gerais. Mesmo em Kopenhagen não se chegou a um consenso.
Enfim, a “qualidade total” ainda é uma grande enrolação, geralmente para fins de “marketing”. Temos, então, o problema da qualidade como aparência. Sabemos que “na guerra e na publicidade, a primeira vítima é a verdade”.
A qualidade como aparência é cultuada por “designers” e modistas apenas interessados em fazer aparecer, ainda que enganosamente, os produtos nas vitrinas e fotos. Tive uma caixa acústica da Philips em que os alto-falantes pareciam fixados ao painel por parafusos allen cromados, mas na realidade eram presos por pequenos parafusos atarraxados na madeira, escondidos, enquanto os parafusos vistosos eram apenas uma folha de plástico moldada. A propaganda enganosa (e o “design” como propaganda) faz parte da cultura criada pela burguesia como um alto negócio. Está associada a um estímulo ao consumismo acrítico e irracional. Pode ser uma qualidade altamente nociva para a sociedade e para o eco-ambiente. Lembro-me do caso da gasolina com chumbo-tetra-etila, um antidetonante para controlar a octanagem, que continuou a ser propagandeada e vendida (como uma inocente “Ethyl Gas”) mesmo quando a indústria petroquímica já sabia tratar-se de produto altamente tóxico para o sistema nervoso humano. Lembro-me da tentativa das petroquímicas brasileiras de proibir o uso de sacos plásticos pretos para lixo, usando para isso a ABNT, pois esses sacos são feitos com material reciclado e a reciclagem, para esses capitalistas, é interessante só no discurso.
O controle da qualidade
Há um controle empresarial da qualidade e um controle social da qualidade.
O controle empresarial é o domínio da burguesia, principalmente nas empresas privadas. Os patrões buscam envolver os trabalhadores nesse processo, fazê-los “responsáveis”, como forma de exercer, na realidade, um controle sobre a qualidade do trabalhador. É certo que o trabalhador tem que ter qualidade, mas a qualidade do trabalhador que interessa ao mesmo não é aquela que interessa ao patrão. O patrão não quer um trabalhador crítico, reivindicativo, mobilizador, grevista. A boa qualidade do trabalhador é a submissão, a obediência, a capacidade de “levar a mensagem a Garcia”, como está em um folheto idiota distribuído pela FIESP. São poderosas as técnicas de manipulação, de cooptação, de alienação, usadas pela burguesia contra o trabalhador, com auxílio de psicólogos profissionais.
Existe um âmbito maior de controle empresarial da qualidade que se dá em associações, como a ABNT. Esse é um nível de controle que poderia extrapolar, ocasionalmente, o interesse puramente burguês e atender algum interesse social e eco-ambiental, mas a estrutura da ABNT foi alterada para dar todo o poder às empresas, com a omissão do poder público. Foi-se o tempo em que o INMETRO controlava a produção das normas técnicas no Brasil, pois agora os tempos são “neo-liberais”, abaixo o Estado! Esse âmbito poderia ser intermediário entre o controle empresarial e o controle social da qualidade.
O controle social da qualidade se dá, principalmente, pelo mercado. É, com certeza, um mau controle, pois o consumidor é extremamente controlado pela propaganda burguesa e pela criação de uma cultura consumista, ostentatória, perdulária, desorientada. Mesmo a força maior do mercado, que seria a competição, é dirigida por acordos mais ou menos tácitos entre as empresas capitalistas.
Um outro controle social seria o institucional. Criam-se, por exemplo, as agências controladoras, como a Food and Drug Administration, a Environmental Protection Agency, a ANATEL, a ANAC, etc. Trata-se, via de regra, de agências de controle controladas pelos controlados.
Se as definições relativas à qualidade são complexas, às vezes difíceis de compreender (ao menos para mim, que não sou um especialista em qualidade), a coisa se torna ainda mais complexa se formos definir custos. Em princípio, estamos trabalhando com custos econômicos, que são mais ou menos equacionáveis, mas nem tanto quanto os custos contábeis. No entanto, é importante analisarmos os custos sociais e ecoambientais, num conceito de “custo total” paralelo ao da “qualidade total”. Mas isso fica para um outro artigo.
* O autor desta matéria, Erneste Pichler, é engenheiro naval e engenheiro de embalagens com mestrado na Michigan State University, School of Packaging. Trabalhou no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo) onde foi responsável pela área de tecnologia de embalagem e acondicionamento logístico. Atualmente atua como perito em prevenção de risco para seguradoras (e segurados).
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