Apesar da aprovação por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a política de reserva de vagas para estudantes negros está longe de alcançar um consenso na sociedade brasileira.
Para esclarecer alguns dos aspectos que permeiam a questão das cotas, como o desrespeito ao princípio da igualdade jurídica, a ameaça de popularização do racismo e a possível extensão do sistema para o funcionalismo público e para o mercado de trabalho, o Instituto Millenium ouviu a opinião do sociólogo Demétrio Magnoli.
Instituto Millenium: O senhor acredita que a aprovação da política de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB) por unanimidade no Supremo Tribunal Federal (STF) representa um retrocesso para legislação brasileira, por quê?
Demétrio Magnoli: Não é apenas um retrocesso. Normalmente, as cortes constitucionais interpretam o texto da Constituição. Nesse caso, não havia nada a ser interpretado, porque a letra do texto era nítida e direta. O que o Supremo fez foi mudar a Constituição, sem dizer isso.
Na verdade, o Supremo eliminou o artigo 5º que dispõe sobre a igualdade dos cidadãos perante a lei. Junto com isso foram eliminados outros artigos como aquele que dispõe sobre o acesso ao ensino superior que, de acordo com a Constituição, será feito através do mérito.
Isso deveria nos levar a uma pergunta crucial que é por que o Supremo fez isso e por que fez isso por unanimidade?
Imil: O Sr. tem uma resposta para essa questão?
Magnoli: A medida revela a fraqueza do princípio da igualdade perante a lei no Brasil. Na história do Brasil esse é um princípio fraco porque somos um país cuja formação política se deu com base nas relações pessoais e porque foi abandonado pelas principais correntes políticas do país. O princípio de igualdade foi abandonado pela esquerda e também pelas correntes liberais e democráticas.
Formou-se um consenso na elite política, não estou falando em consenso nacional e nem da população, de aceitação da eliminação do princípio de igualdade perante a lei. Acho que o Supremo reflete o espírito de um tempo onde a elite política quase como um todo tem moldado a ideia da raça.
O que eu tento fazer é apontar um caminho de reflexão. Seria importante notar o contraste entre o que fez o Supremo e o que fizeram cortes constitucionais de outras democracias diante da questão das cotas raciais.
Na Índia, pouco depois da independência, tiveram início processos de cotas para as castas. Essas propostas foram barradas pela corte constitucional indiana obrigando o Congresso a relativizar o princípio da igualdade perante a lei, introduzindo uma clausula racial na Constituição indiana. Recentemente, a Suprema Corte Americana barrou as políticas de preferência racial de modo geral.
Imil: Em uma entrevista concedida ao Canal Livre, o Sr. associa a criação de cotas raciais e a consequente divisão do povo brasileiro entre brancos e negros a uma demanda por poder político da liderança negra. O senhor poderia explicar esse argumento?
Magnoli: De um modo geral, as iniciativas de políticas raciais não partiram de nenhum partido político. Elas partem das chamadas ONGs do movimento negro, com laços internacionais. E o que essas ONGs buscam é poder político, não algum tipo de redenção social. Dizer que esse tipo de política é favorável aos pobres é uma patética tentativa de justificar uma política de raças. Se alguém quisesse fazer política para os pobres passava a fazer uma política de renda.
Imil: Quais são as consequências das cotas para a área de Educação?
Magnoli: O que esta sendo feito na verdade é trocar uma série de ingressantes da universidade de cor mais clara por uma série de ingressantes de cor mais escura. Sendo os dois grupos pertencentes, de modo geral, à classe média.
Nesse caminho se violam direitos individuais, o direito de candidatos que tiraram notas melhores que outros candidatos, mas foram preteridos pelo sistema de cotas. A explicação para isso é que o direito desses indivíduos deve ser suprimido em nome de um princípio de redenção racial.
O que nos coloca num ponto chave. O Supremo substituiu uma Constituição que vê a nação com um conjunto de indivíduos por uma Constituição que vê a nação como uma coleção de grupos de raça.
Imil: O senhor acredita que haverá um avanço da política de cotas nas universidades brasileiras, isto é, universidades que ainda não adotaram o sistema como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Campinas (Unicamp) tendem a aderir?
Magnoli: Acho que sim. Eu enfatizo o voto do ministro Marco Aurélio quando ele diz que não só as cotas são legais, como elas deveriam se generalizar. A decisão do Supremo coloca uma extraordinária pressão sobre as universidades que não adotaram o sistema de cotas raciais de algum tipo.
Isso é o ovo da serpente do racismo como princípio de mobilização popular
Imil: A política de cotas raciais pode ser adotada em outras esferas da maquina pública?Magnoli: É cada vez mais provável a hipótese de generalização de cotas raciais no funcionalismo público e no mercado de trabalho privado em geral. Porque não há nenhuma diferença de natureza entre cotas raciais nas universidades e cotas raciais no mercado de trabalho e no funcionalismo público. Os mesmos argumentos que serviram para justificar as cotas nas universidades podem justificar a extensão dessa política para o funcionalismo público e para o mercado de trabalho privado. Esses serão os principais alvos das políticas racialistas nos próximos anos.
Imil: Quais seriam as consequências da generalização da política de cotas para o país?
Magnoli: A difusão popular do racismo. O racismo existe em todos os lugares. Ele se torna um problema crítico quando se difunde popularmente. No Brasil existe racismo, o que praticamente inexiste aqui é o racismo como uma força mobilizadora popular.
A generalização das cotas como quer o ministro Marco Aurélio e as ONGs racialistas tende a inculcar a ideia de identidade de raça no meio do povo. Quando você generaliza as cotas o que você faz e difundir a regra segundo a qual “eu faço parte de uma raça e disso depende os meus direitos”. Isso é o ovo da serpente do racismo como princípio de mobilização popular.
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